A Paródia
Os adultos são muito bons a alterar as condições dos contratos na vigência dos mesmos. Essa é a violência mais comum que exercem para com os mais novos.
Passava a vida a pedir um cão, passavam a vida a prometer-me um cão. Quando a casa tivesse condições, diziam. A família mudou para um casa grande, com jardim e quintal. Lembrei a promessa. Foi acrescentada outra condição que eu não contava: quando eu fosse maior e pudesse tratar do animal. Esse argumento continha o mistério dos mistérios. Quando se é verdadeiramente grande para se ter um cão? Tudo se mediria por centímetros? E se eu não crescesse? E o que era ser maior? Seria o mesmo que ser crescido? Mas eu queria o cão agora por não ser precisamente crescida. Queria o cão porque me sobrava tempo para estar com ele quando voltasse da escola, queria o cão para brincar com ele enquanto me dava prazer rebolar pelo chão e me era permitido sujar a roupa. Se eu crescesse muito, passaria a ter horários de trabalhos, gestos de decência e outras ocupações e impedimentos que fariam com que o cão não tivesse em mim uma companhia para brincadeiras. Alegava que o cão era urgente e dava sempre a mesma razão: a promessa. Mas o cão nunca mais vinha. Um dia, resolvi o problema. Pedi um cachorro e foi-me logo entregue um pequeno novelo creme que choramingava e se aninhava nos meus braços. Quando cheguei a casa, embevecida com a minha nova responsabilidade, ouvi ao longe: uma cadela não fica cá muito tempo.
Pedi ajuda para lhe escolher o nome, ficou Paródia e viveu escassos dois meses comigo. Um dia, o meu pai veio buscá-la para a levar para uma quinta onde, prometeu-me (outra promessa), ela seria muito feliz.
Chorei tanto que ainda guardo no coração o vazio corroído de sal das minhas lágrimas no peito. Chorei tanto que ao longo da minha vida sei que nunca voltei a repetir tamanho rio de lágrimas. Chorei por me sentir injustiçada, chorei por achar que o animal iria sofrer, chorei por impotência absoluta de impor aquele afecto, chorei por perceber que o que era tão importante para mim era facilmente descartado pelos grandes. Chorei até ficar roxa, chorei até me faltar o ar, chorei até sentir a subir do fundo de mim um ódio cego pelas razões que me eram apresentadas (nenhuma reconhecia o sofrimento de uma menina de sete anos e, pensava eu, o de uma cadela de três meses).
Decidi fugir de casa e com os olhos turvos de tanta lágrima corri pelos pinhais na mais completa solidão. O meu pai seguia-me de longe com o carro, mas a solidão, aquela solidão, sente quem sabe que está só numa decisão, que nunca ninguém ouvirá a sua voz, o seu apelo... isso é solidão, o inapelável sentimento de si, a negação da nossa vontade.
Voltei, cansada de tanto andar, chorar, soluçar. O peito vazio, a cara a arder de tanto sal, os olhos inchados, os lábios rilhados pela raiva que dava força aos dentes.
A minha mãe assustou-se e deu-me um calmante depois de ver que eu à noite não dormia e continuava a soluçar por baixo dos lençóis.
Nunca mais falei na Paródia. Nunca. O meu pai ia-me dando notícias dela, que vivia agora numa quinta, onde havia outros cães, cavalos, gatos, patos e galinhas... Um dia, o meu pai trouxe um cão. Um cão pequeno e peludo...Um peluche de marca, um cão de raça. Era o seu cumprimento da promessa. Esse cão, que fez parte da minha infância, adorava o meu pai, foi o cão dele, que lhe dava afecto, que se enroscava nele. O amor do cão era correspondido pelo meu pai que o levava no carro, feliz por sentir tanto afecto. Um dia, certo que já tudo estava esquecido, o meu pai deu a notícia: A Paródia morreu ao ter cãezinhos, era ainda muito nova para ser mãe. Estavamos à mesa, e eu continuei a pôr o garfo na boca ao mesmo ritmo, não disse nada, como se não tivesse ouvido nada. O meu coração sentiu de novo o ardor do sal das lágrimas daquela tarde, o meu coração partiu para junto da Paródia, mas eu fiquei ali a comer calmamente como se nada tivesse acontecido. Não disse nada. Tinha aprendido que não devemos mostrar nunca afecto, pois que ele nos podia ser levado. A indiferença aparente escondia também outra coisa: a falta de confiança depositada nos adultos.
Nunca tinha percebido que isso se tinha passado assim. Até hoje, quando me propus de novo lembrar a Paródia e de repente fiquei (40 anos depois) com os olhos cheios de lágrimas. Hoje tenho a certeza que a eternidade está nos afectos, que são eles e só eles que vencem o tempo e a matéria.