ninho da cotovia

Cotovia, cotovia enquanto se capa não se assobia

Thursday, January 04, 2007

A Paródia

Os adultos são muito bons a alterar as condições dos contratos na vigência dos mesmos. Essa é a violência mais comum que exercem para com os mais novos.
Passava a vida a pedir um cão, passavam a vida a prometer-me um cão. Quando a casa tivesse condições, diziam. A família mudou para um casa grande, com jardim e quintal. Lembrei a promessa. Foi acrescentada outra condição que eu não contava: quando eu fosse maior e pudesse tratar do animal. Esse argumento continha o mistério dos mistérios. Quando se é verdadeiramente grande para se ter um cão? Tudo se mediria por centímetros? E se eu não crescesse? E o que era ser maior? Seria o mesmo que ser crescido? Mas eu queria o cão agora por não ser precisamente crescida. Queria o cão porque me sobrava tempo para estar com ele quando voltasse da escola, queria o cão para brincar com ele enquanto me dava prazer rebolar pelo chão e me era permitido sujar a roupa. Se eu crescesse muito, passaria a ter horários de trabalhos, gestos de decência e outras ocupações e impedimentos que fariam com que o cão não tivesse em mim uma companhia para brincadeiras. Alegava que o cão era urgente e dava sempre a mesma razão: a promessa. Mas o cão nunca mais vinha. Um dia, resolvi o problema. Pedi um cachorro e foi-me logo entregue um pequeno novelo creme que choramingava e se aninhava nos meus braços. Quando cheguei a casa, embevecida com a minha nova responsabilidade, ouvi ao longe: uma cadela não fica cá muito tempo.
Pedi ajuda para lhe escolher o nome, ficou Paródia e viveu escassos dois meses comigo. Um dia, o meu pai veio buscá-la para a levar para uma quinta onde, prometeu-me (outra promessa), ela seria muito feliz.
Chorei tanto que ainda guardo no coração o vazio corroído de sal das minhas lágrimas no peito. Chorei tanto que ao longo da minha vida sei que nunca voltei a repetir tamanho rio de lágrimas. Chorei por me sentir injustiçada, chorei por achar que o animal iria sofrer, chorei por impotência absoluta de impor aquele afecto, chorei por perceber que o que era tão importante para mim era facilmente descartado pelos grandes. Chorei até ficar roxa, chorei até me faltar o ar, chorei até sentir a subir do fundo de mim um ódio cego pelas razões que me eram apresentadas (nenhuma reconhecia o sofrimento de uma menina de sete anos e, pensava eu, o de uma cadela de três meses).
Decidi fugir de casa e com os olhos turvos de tanta lágrima corri pelos pinhais na mais completa solidão. O meu pai seguia-me de longe com o carro, mas a solidão, aquela solidão, sente quem sabe que está só numa decisão, que nunca ninguém ouvirá a sua voz, o seu apelo... isso é solidão, o inapelável sentimento de si, a negação da nossa vontade.
Voltei, cansada de tanto andar, chorar, soluçar. O peito vazio, a cara a arder de tanto sal, os olhos inchados, os lábios rilhados pela raiva que dava força aos dentes.
A minha mãe assustou-se e deu-me um calmante depois de ver que eu à noite não dormia e continuava a soluçar por baixo dos lençóis.
Nunca mais falei na Paródia. Nunca. O meu pai ia-me dando notícias dela, que vivia agora numa quinta, onde havia outros cães, cavalos, gatos, patos e galinhas... Um dia, o meu pai trouxe um cão. Um cão pequeno e peludo...Um peluche de marca, um cão de raça. Era o seu cumprimento da promessa. Esse cão, que fez parte da minha infância, adorava o meu pai, foi o cão dele, que lhe dava afecto, que se enroscava nele. O amor do cão era correspondido pelo meu pai que o levava no carro, feliz por sentir tanto afecto. Um dia, certo que já tudo estava esquecido, o meu pai deu a notícia: A Paródia morreu ao ter cãezinhos, era ainda muito nova para ser mãe. Estavamos à mesa, e eu continuei a pôr o garfo na boca ao mesmo ritmo, não disse nada, como se não tivesse ouvido nada. O meu coração sentiu de novo o ardor do sal das lágrimas daquela tarde, o meu coração partiu para junto da Paródia, mas eu fiquei ali a comer calmamente como se nada tivesse acontecido. Não disse nada. Tinha aprendido que não devemos mostrar nunca afecto, pois que ele nos podia ser levado. A indiferença aparente escondia também outra coisa: a falta de confiança depositada nos adultos.
Nunca tinha percebido que isso se tinha passado assim. Até hoje, quando me propus de novo lembrar a Paródia e de repente fiquei (40 anos depois) com os olhos cheios de lágrimas. Hoje tenho a certeza que a eternidade está nos afectos, que são eles e só eles que vencem o tempo e a matéria.

Sunday, December 31, 2006

O frio dos pinhais


Era durante as férias do Natal que tudo parecia possível. Havia o frio, aquele frio cortante que trazia consigo as constipações e as ameaças das frieiras que, por serem tão plebeias, atacavam só os dedos das criadas.
Havia ainda a feitura do presépio que implicava um mergulho na humidade dos pinhais. O cheiro a verde impregnava-se no nariz, nas mãos roxas e na roupa. Ponha-se a mão devaraginho por baixo de tapete fofo e ia-se levantando, descolando com cuidado do solo aquela camada mais ou menos espessa, desalojando os bichos rasteiros que fugiam, estremonhados, trepando pelos nosso braços. Sacudiamos as mãos dos bichos, dos agulhos dos pinheiros que se espetavam nas mangas de lã e afofavamos o tapete numa caixa de cartão. Havia tanto musgo que bastava encontrar um "jazida" para aí nos fornecermos de verde para mais do que um presépio, mas gostavamos de passar toda a manhã ou toda a tarde na tarefa. Subíamos e descíamos por carreiros de mato, pisávamos caganitas de cabra e brincávamos com os vasos da resina. Regressávamos de cara vermelha, mãos peganhentas, ranho a pender no nariz, tosse e a roupa húmida dos fetos altos.
Os adultos, tementes do frio e das suas consequências, não conseguiam comprimir o discurso do espanto: Mas onde andaram vocês para virem nesse estado? Olha para esta roupa toda molhada. Como fizeram isto? Mas é preciso tanto tempo para se apanhar uma mão cheia de musgo? A tantas dúvidas nós respondíamos com a única certeza: o silêncio. Deixávamos que nos assoassem o moco do nariz, que nos esfregassem com álcool as mãos esbranquiçadas da resina, os arranhões do mato, as lambidelas dos cães que vagueavam sem destino pelos caminhos ermos, tudo numa mudez onírica. Estavamos no país dos nossos sonhos, no território vasto, rico de mistérios e sombras dos pinhais da nossa infância. Só nós poderíamos saber o que nos esperava na névoa da manhã quando no dia seguinte, com uma desculpa qualquer, voltássemos para lá à procura das bagas ou dos cogumelos vermelhos de grosso pé terroso.
Era uma território tão vasto que toda África cabia nele. As aventuras do Capelo e Ivens, que sabíamos da escola, só eram maiores porque ali não havia leões nem negros, duas realidades tão exóticas que nem as queríamos nas nossas aventuras. Chamavamos o medo uns dos outros com a ajuda da imaginação e do desejo: Parece-me que vi um lobo. Lobo não, era uma raposa, eu também vi. E ali, que barulho foi aquele? Uma cobra, devia ser uma cobra.
Por entre os pinheiros espalhava-se um nevoeiro de frio e, fora isso, uma ou duas cabras ou alguma mulher curvada à cata de lenha, não havia ali mais nada, diria quem ali fosse. Mas para nós, nada era o que parecia aos outros e mesmo a podoa com que a mulher rachava os ramos velhos era uma arma para se defender das feras que os nosso olhos viam.

Sunday, April 16, 2006

O teu pai é careca?

Saturday, April 01, 2006

O vestido dos passarinhos


Apetece-me tentar desenhá-lo, mostrar como tinha um decote bonito e fresco e como rematava com dois lacinhos finos nos ombros. A saia, como quase todas as saias das meninas da época, tinha uma roda que facilitava as corridas pouco femininas que me deixavam marcas nos joelhos. Quero procurar palavras para o cheiro que tinha dentro do guarda-fato, o meu chamava-se guarda-vestidos, quero lembrar-me de como o poupava e me sentia leve com ele, mas baralho tudo na cabeça, as palavras desaparecem num ápice e ficam só as imagens que não consigo contar. Era uma vestido de fundo branco, de um algodão bom, daqueles antigos que encorpovam sem perder a maciez e que tinham um certo brilho aristocrático. Os passarinhos eram pequenos, esverdeados uns, mais amarelados outros e ainda, uma imensa minoria, de pequenas aves encarnadas e castanhas. Voavam assim, pequenas e leves, pelo branco do vestido, juntando-se em bandos perto dos franzidos e espalhando-se pelos os céus lá para os lados dos meus ombros. Os outros vestidos não tinham nome - e lembro-me de cinco, seis ou até talvez dez vestidinhos amarelos, com peitilho, com paletas a imitar bolsos, de linha direita, rodados, macios ou que "picavam" - mas aquele era o meu vestido preferido: o vestido dos passarinhos. Não conseguia imaginar que não fosse meu para sempre, que algum dia o meu corpo o expulsasse por apertado, curto ou ambas circunstâncias. Não me queixava se as cavas franziam a pele debaixo dos braços, deixando ali marcados com violência os apertos do algodão, tentava respirar de mansinho para que o vestido entrasse à justa por sobre a cabeça e se arrumasse ao milímetro no meu peito rechonchudo. Tentei tudo mas um dia o vestido foi posto de parte. "Deixa, já não te serve. A mãe depois compra-te outro". Entre o desgosto e a desilusão pelo abandono a que nos votámos (o vestido e eu, nenhum colaborava) agarrei-me à ideia mais pacífica. Reparei que os passarinhos voavam agora mais ténues pelo meu corpo, o verde era mais desmaiado, o vermelho perdera o sangue ficando-se por um rosado triste... Talvez fosse bom dar-lhe descanso, pendurá-lo no escuro guarda-vestidos e esperar que o descanso lhe fizesse bem ao cansaço das cores. Mas naquele tempo o lixo não era seleccionado pela simples razão de que nada (ou muito pouco) era considerado lixo. Os restos da comida iam para as galinhas, as garrafas de vidro eram lavadas e aproveitadas para outros usos, como ir comprar vinho ao litro, azeite, petróleo ou mesmo para ir à farmácia comprar álcool puro ou desnaturado. As camisas tinham os colarinhos virados e revirados, perdiam-se tardes a desmanchar um casaco comprido de "uma lã tão boa" que se aproveitava para fazer do outro lado, com os trapos já sem proveito faziam-se esfregões ou compunham-se tiras compridas que se enovelavam para irem para a mulher do tear que deles faziam mantas de trapo com bonitos feitios. Nesse tempos, não havia recolha selectiva de lixo, nesses tempos reutilizáva-se tudo... O vestido dos passarinhos ficou um ano ainda no fundo do guarda-vestido, olhava para ele, passava as minhas mãos pelo tecido com uma ternura pelo seu tamanho encolhido numa nostalgia de passados que só nós tínhamos vivido. O vestido dos passarinhos e eu éramos uma dupla que testemunhara uma boa parte da minha infância. E isso conferia-lhe uma importância que o poupava ao destino de toda a minha roupa que o meu corpo em crescimento expulsava. Os pobrezinhos eram na altura uma instituição que nos facilitava o difícil caminho do céu. Existiam para que nós pudessemos fazer bem. Sem eles para nos lembrar como poderíamos saber se eramos boas pessoas? Os pobrezinho levavam sempre a roupa que já não servia, algum resto de comida, um pouco de mercearias e um "tenha paciência" final. Os pobrezinhos eram os nossos maiores amigos porque agradeciam tudo com uma humildade que nos remetia para um lugar que as nossas acções nunca podiam comprar: nada mais nada menos do que a direita do Senhor. Ficávamos ali sentados, naquela cadeira de luxo, qual camarote de ópera, depois de praticarmos o bem aos pobrezinhos e de eles nos mostrarem, tão reverentes ,até que pono tínhamos sido bons. Um dia, o meu vestido dos passarinhos levou o mesmo destino das coisas que nos conduziam ao céu. Em vão gritei "esse não!". O meu egoísmo foi-me logo apontado e mesmo depois de esboçar um tímido "os outros sim...mas esse não, mãe, só esse!" o vestido voou do cabide de madeira trabalhada, pintado com uma cabeça de um porco cor de rosa que se perfilhava ao lado de outros com um cabeça de galo, de gato, de palhaço. Não houve aquilo a que na altura se poderia chamar violência. Não houve um despachado "porque sim" ou um "vai, e tu não tens quereres". Houve uma conversa de pobrezinhos, de egoísmo, de gente que passa frio (mas o vestido é de Verão, mãe!) e fome em comparação comigo que tudo tinha. Pela minha cabeça passou um pensamento: Tudo, não! Vou ficar sem o vestido dos passarinhos. E se em troca desse um dos que me servem?, tentei. "Isso é não ser orieentado. Devemos dar o que já não nos serve e ainda serve aos outros. " Passaram 40 anos, quarenta, quatro décadas, e ainda vejo o meu vestido dos passarinhos a voar do meu guarda-vestidos perante a minha incapacidade de dizer Não.

Friday, March 31, 2006

A noiva

Não sei se eram parecidas com estas as camélias brancas que a mãe levava no dia frio do seu casamento. Era uma ramo de pé curto, próprio para viagens rápidas e, logo após a cerimónia no convento de Cristo, foi entregue a Nossa Senhora noutra igreja da cidade. A entrega do ramo, a entrega da noiva, a entrega da vida daí para a frente a Nossa Senhora funcionava como uma espécie de consagração. Uma desresponsabilização e uma aceitação da óbvia boa vontade divina.
Digamos que o casamento não foi o mais banal. Digamos que havia no rosto de alguns convidados alguma ponta de curiosidade. Digamos ainda que havia tristeza noutros olhos. A minha irmã tinha 13 anos e ia levar o pai ao altar. Não era uma coisa que acontecesse a todas as crianças. Não era o que tinha acontecido com as meninas que conhecia. Levou o pai ao altar e ganhou uma madrasta, nome com que as histórias mascaram as rainhas das malvadas. O seu olhar assustado não empalideceu a cerimónia, mas deixou um lastro de baba húmida nas paredes ainda impolutas daquele casamento acabadinho de realizar. Alguns curiosos olhavam a elegência da noiva, mulher já nos 30, e pensavam porque teria ela esperado tanto para acabar por casar com um homem viúvo. O viúvo tentava apagar da cabeça, ao menos por esse dia, memórias antigas e entregar-se virgem de sofrimentos e mágoas à sua nova mulher. As camélias, agarradinhas mesmo junto do corpo com muito cuidado, não caia a flor pesada e só fique a ramagem envernizada na mão, eram brancas, branquissímas. Apesar de ser Inverno não foram fáceis de encontrar assim tão brancas. Houve que palmilhar, saber quem tinha, rezar para que as flores abrissem na altura certa. Era quase Natal, 18 de Dezembro, estava frio mas não chovia. Alguém olhou para o céu, temendo a nuvem escura e baixa. "Nah! não tem cara disso. Hoje não chove". Se tivesse chovido não teria vindo mal ao mundo. Afinal, casamento molhado é casamento abençoado. E assim, como foi?

Thursday, March 30, 2006

[Atrás da porta]

Não foi há muito tempo que as primeiras coisas de que me lembro aconteceram. Tudo parece ter sido ontem mas acabaram por passar, sei lá, talvez uns quarenta anos. Não mais. Ou talvez mais, um ano ou dois, mas ,que é isso no cômputo geral?
Recordo-me da casa onde vivi logo depois de nascer e onde me mantive na expectativa de que o mundo era todo lá fora. Trata-se de uma casa de sombras e cheiros, onde tudo podia acontecer. Havia, por exemplo, a visita do diabo que vinha todas as noites postar-se à coca entre a fresta da porta do quarto. Ele lá, sossegadinho, no corredor a espiar-me, quieto e firme durante horas. Havia qualquer coisa de acusador nos seus olhos. Em vão me diziam que não estava lá nada. Qual quê! Estava e que culpa tinha eu se eles não o viam? Enquanto ali vivi - até aos sete anos, o que nessa altura era uma vida e meia ou mais - todas as noites, desde a primeira - quando esqueci a vassoura das cavalgadas escostada à porta - ele ali se postava. Alturas houve em que o não vi como ameaça. Habituara-me à sua presença, era quase um anjo protector, negro e cornudo. Onde foste buscar essa ideia do diabo?, perguntavam-me.
No livro do soldadinho de chumbo tinha visto um, logo sabia reconhecer a sua imagem. Era ele... era.Tinha a certeza. (ter-me-á vindo essa visão de ter ouvido alguém falar n'"o diabo atrás da porta?". Não sei. Este medo maior que eu foi um dos primeiros que tive. E que retive até hoje. Não gosto de dormir no escuro, não vá acordar com um olhar espetado em mim, não vá o diabo tecê-las.